Estava tudo bem até novembro de 2006. Uma dor de cabeça
aqui, alguma fragilidade óssea acolá ou tensão alta por vezes. De resto, a vida
corria de feição para Isabel Marques. Acordava de manhã, vestia-se, ajudava o
filho a preparar-se, despedia-se do marido e caminhava até à creche onde
trabalhava. Antes de iniciar as suas funções, tomava uma bica e punha as
novidades em dia com as suas colegas. Riam-se, brincavam com as manias de
alguns pais, trocavam histórias de vida e tentavam ultrapassar os obstáculos
com uma perna às costas. Era uma vida pacata, embora cansativa e cheia de
projetos. “Sempre gostei de me manter ativa. Odeio a monotonia e por isso
inventava actividades e assumia diversas responsabilidades. Tinha muito orgulho
nisso”, conta. Na altura, com 33 anos de idade, era uma jovem, mãe, esposa,
educadora, com um futuro brilhante pela frente. Até ao dia em que o destino lhe
trocou as voltas.
“Foi no dia 8 de dezembro. Estávamos a preparar as
lembranças de natal, juntamente com as crianças. Fazíamos pequenas pinturas,
esculturas e postais que depois elas iam levar aos pais. A meio da manhã comecei
a sentir um cansaço extremo, com
fortíssimas dores de cabeça, parecia que o meu corpo se estava a soltar de
mim”. Foi o início do purgatório.
Durante alguns dias achou que
eram sintomas de stress, gripe ou cansaço extremo. Uns dias depois, desmaiou e
foi levada para o hospital de Santa Maria. Após diversos exames, o primeiro
diagnóstico revelou um acidente vascular cerebral (AVC). Isabel ficou sem
conseguir andar, tinha dificuldade em processar as ideias e as dores de cabeça
eram intensas. “Foi horrível. Só me apetecia morrer”, desabafa. No entanto,
aquilo que prometia ser o fundo do problema, revelou-se apenas a ponta do
icebergue. Parte alguma do organismo estava livre de problemas: articulações,
músculos, raciocínio, visão, locomoção, fala, entre outras. A lista era imensa
e o quadro médico demasiado complexo para um simples AVC. “Fui encaminhada para
a neurocirurgia porque continuava com sucessivas vasculites cerebrais e também
tive consultas de reumatologia. Ao todo, fiz seis ressonâncias magnéticas e uma
cintilografia cerebral. Após seis longos meses [forte tónica nestas palavras]
tive a notícia que me arrasou por completo”: Isabel era portadora de lúpus
sistémico disseminado muito grave. “O médico foi perentório: tinha seis meses
de vida. Nada mais”. Faz uma pausa para recordar o momento e suspira. “É como
se uma hecatombe tivesse caído sobre mim”.
Do dia para a noite, as urgências
passaram a ser uma segunda casa. As dores eram constantes e o tratamento
ineficaz. “Comecei a tomar cerca de 30 comprimidos por dia!”, exclama.
"Doses de químicos tão elevadas que, em certas alturas, perdia toda a
noção de quem era e de onde estava. Cheguei ao ponto de sofrer intoxicações
medicamentosas. Era simplesmente angustiante. Senti-me sem chão”, exaspera.
Preconceito
social
Há três tipos de lúpus: o lúpus discóide, que afeta a pele; o lúpus sistémico, que toca um
maior número de órgãos; e o lúpus induzido por drogas. É auto-imune,
de causa desconhecida, desregulando o sistema imunitário. Ou seja, o organismo
ataca as próprias células e tecidos do corpo, resultando em inflamação. O diagnóstico é difícil: parece uma gripe, um AVC,
reumatismo, cefaleia, ou outra. "Há quem espere anos para saber. Eu tive
ainda alguma sorte porque rapidamente descobriram". Esse foi o único ponto
positivo na história de Isabel Marques. Com "doses cavalares" de
cortizona e corticoide e sessões de quimioterapia, Isabel Marques ganhou peso,
perdeu cabelo, vomitava constantemente e mal dormia. O pior de tudo? “Deixei de
poder ser independente. A minha sorte foi o meu marido e o meu filho que
estiveram sempre presentes". A antiga educadora de infância também elogia
o trabalho de toda a equipa médica que a acompanhou. Porém, o maior problema, confidencia,
é o estigma social. "Como se avalia a dor? Muita gente acha que quando nos
queixamos estamos apenas a ser preguiçosos ou que a inventar. Uma mancha
vermelha no rosto reconhece-se e a queda de cabelo também. Já o cansaço não se
vê". O lúpus é invisível. Mas ele está lá. Qual lobo sempre pronto a
atacar.
Em 2008, a doença agrediu o
sistema nervoso central de Isabel Marques, teve mais uma vasculite cerebral e
ficou três meses internada. Na mesma altura, o pai faleceu, vítima de cancro.
"Foi uma fase terrível. Acompanhei-o sempre e só temia ter que passar pelo
mesmo". De repente, Isabel estava a viver o mesmo drama. Passou horas, de
agulha dentro do braço, a ver o veneno entrar pelo corpo. Naqueles silêncios,
falava com o pai e pedia-lhe que lhe desse força. Depois de cada sessão,
levantava-se, seguia para casa (recusava sempre ficar em ambulatório) e deixava-se
à mercê da sorte. A recuperação foi lenta e sempre sujeita ao sabor da doença. “Mesmo
que passe temporadas bem, o lúpus está cá sempre e é uma incógnita quando volta
para infernizar”. Pode ser uma pequena loucura na alimentação, um pouco de sol
a mais, um ligeiro problema no trabalho… ninguém sabe. “Ao fim de dezenas de
quimioterapias, internamentos, AVC, urgências, quedas, milhares de comprimidos,
desisti de sofrer. Impus-me: quem manda em mim não é o lúpus, sou eu", revela.
A
morte sempre à espreita
Em 2010, depois de sucessivas baixas
médicas, e com um grau de incapacidade atribuído de 60 por cento, Isabel
Marques regressou ao trabalho. "Era impossível manter o mesmo ritmo de stress,
por isso deixei a creche, fui até à Câmara de Vila Franca de Xira, expus o meu
caso à então presidente, Maria da Luz Rosinha, e fui transferida para o núcleo
museológico de Alverca. Estou agora num ambiente mais calmo e o que faço requer
o menor esforço possível. É pouco, mas sinto-me útil, em vez de ficar fechada
em casa, a lamentar-me com a vida”. Deu assim a volta ao problema e passou a
olhar para a doença numa perspetiva positiva. Com tanto sofrimento, é possível?
“Sim, sou mais feliz. O que pode parecer um contra senso. Apesar de ter esta
bomba dentro de mim, graças ao lúpus sou mais forte, corajosa e feliz”.
Além de manter um emprego, ainda
que com algumas condicionantes, criou o grupo no facebook chamado “O lúpus não
se vê mas sente-se”, que pretende ser uma plataforma de partilha de
experiências e esclarecimento de dúvidas. E a 28 de maio irá moderar um debate
que vai decorrer no núcleo museológico de Alverca, sobre o lúpus, com a
presença de médicos e doentes que irão partilhar as suas histórias de vida. “Eu
quero ajudar as pessoas a ultrapassar a doença, porque ela é fortemente
debilitante e envolve também familiares e amigos. O intuito é também
consciencializar a sociedade para este problema tão complexo. É necessário o
apoio de todos para que os lúpicos possam ultrapassar melhor as dificuldades”.
No fundo, Isabel quer ser um exemplo de vida.
Apesar de viver há mais de uma década
no fio da navalha, Isabel sorri. Ainda que, neste momento, tenha o braço direito
inflamado e nível de dor nove (numa escola de 0 a 10) e tenha regressado às
sessões de quimioterapia. “Existem doenças bem piores e é possível contornar
tudo isto”, ressalva. “Basta fazer o tratamento certinho, tomar os medicamentos
e seguir os conselhos dos médicos. Deram-me seis meses de vida e, veja, ainda
cá estou uma década depois!”.
Everything was fine until November
2006. A headache here, some bone fragility there or some high blood pressure.
Moreover, the life was ok for Isabel Marques. She got up every morning,
dressed, helped her child to prepare to school, said goodbye to her husband and
walked down to the kindergarten where she worked. Before beginning her duties, she
drunk a coffee and put the news up to date with her peers. They laughed, played
with the foibles of some parents, exchanged life stories and tried to overcome
the obstacles with as much fun as possible. It was a quiet life, although exhausting
and full of projects. "I always liked to keep me active. I hate the
monotony and so I invent activities and assumed the most responsibilities that I
can. I was very proud of that", she says. At the time, with 33 years old,
she was a young mother, wife, educator, with a bright future ahead. Until the
day that her destiny changed her life.
"It was on the 8th of December.
We were preparing the Christmas presents, along with the children. We made
small paintings, sculptures and postcards that then they would take to their
parents. In the midmorning I began to feel extreme fatigue, with very strong
headache, it felt like my body was to release me". It was the beginning of
the purgatory.
For a few days she thought it was
symptoms of stress, cold or extreme tiredness. A few days later, she fainted
and was taken to the hospital in Lisbon. After several tests, the first
diagnosis revealed a stroke. Elizabeth was unable to walk, had difficulty
processing the ideas and the headaches were intense. "It was horrible. I
only wanted to die", she complains. However, what supposed to be bottom of
the problem, was in fact only the tip of the iceberg. No part of the body was
free of problems: joints, muscles, mind, vision, mobility, speech, among
others. The list was immense and the medical framework too complex for a simple
stroke. "I was referred to the neurosurgery because I continued with
successive cerebral vasculitis and also had rheumatology consultations. In all,
I did six MRIs and a brain scan. After six long months [strong emphasis in
these words] the news struck me completely". Isabel was a carrier of very
serious widespread systemic lupus. "The doctor was peremptory: she had six
months to live. Nothing more". She pauses a few seconds to remember the
moment and sighs: "it's was as if a catastrophe had fallen over me."
From day to night, the emergency
room became a second home to her. The pain was constant and the treatment ineffective.
"I started taking about 30 pills a day!" She exclaims. "Chemical
doses so high that, at times, I lost all sense of who I was and where I was. I
got to the point of suffering drug intoxication. It was simply agonizing. I
felt ungrounded, she exasperates to me.
Social
prejudice
There are three types of lupus:
discoid lupus erythematosus, which affects the skin; systemic lupus, which touches
a larger number of organs; and drug-induced lupus. It is autoimmune, with unknown
cause, deregulating the immune system. In other words, the body attacks its own
cells and tissues, resulting in inflammation. Diagnosis is difficult: it seems like
a cold, stroke, rheumatism, headaches, or other. "Some people wait years
to know. I was lucky because they quickly discovered the problem". That
was the only positive side in Isabel Marques story. With "massive
doses" of cortisone and steroids and chemotherapy sessions, she gained
weight, lost hair, vomited constantly and barely slept. Worst of all? "I became
dependent from others. My luck was my husband and my son whom were always
present". The former kindergarten teacher also praised the work of the
entire medical team that accompanied her. But the biggest problem, she confides
to me, it is the social stigma. "I can one assesses pain? Many people
think that when we complain we are just being lazy or inventing. A red stain on
the face is recognized and the hair loss as well. But the fatigue is not seen".
Lupus is invisible, but it's there, like wolf always ready to attack.
In 2008, the disease attacked Isabel
Marques central nervous system, she had more cerebral vasculitis and stayed
three months hospitalized. At the same time, his father died of cancer.
"It was a terrible time. I accompanied him every single day and only
dreaded having to go through the same". Suddenly, Isabel was living the
same drama. She spent hours, needle inside her arm, seeing the venom entering
her body. In those silences, she spoke to her father and asked him to give her
strength. After each session, she got up, followed home (always refused to stay
in the clinic) and left her life in the hands of fate. The recovery was slow
and always subject to the flavor of the disease. "Even if seasons I pass
well, lupus is always here and is unknown when it returns to demonize my life".
It can be a small mistake in the diet, a little more sun than the usual, a
slight problem at work ... no one knows. "After dozens of chemotherapy,
hospitalization, stroke, emergency, falls, thousands of pills, I gave up
suffering. I said to myself: who controls me is not lupus, It’s me", she
says.
Death is always
lurking
In 2010, after repeated sick leave,
and with a 60 percent degree of disability attributed, Isabel Marques returned
to work. "It was impossible to keep the same pace of stress, so I left the
kindergarten, I spoke to my boss and I was transferred to a calmer job in the Alverca
museum center. I now am in a quieter environment and what I do requires little
effort as possible. It's not much, but I feel useful, instead of being closed
at home, mourning my life". She turned to the problem over and started to
look for the disease in a positive perspective. With so much suffering, is it
possible? "Yes, I'm happier. What may seem counter intuitive, despite this
bomb inside me. But thanks to lupus I’m stronger, brave and happier" .
In addition to keeping a job, albeit
with some restrictions, she created the group on facebook called "Lupus Is
invisible but it can be felt" which is intended to be as a sharing
platform of experiences and way to answer questions from others people. "I
want to help people overcome the disease, because it is highly debilitating and
also involves family and friends. The aim is to also make society aware of this
so complex problem. We need the support everyone so that patients can best
overcome the difficulties". Basically, Isabel wants to be an life example.
Despite living for more than a decade
on the edge, Isabel smiles to me. Although, at present, she has an inflamed right
arm and pain level nine (in a scale from 0 to 10) and she has returned to
chemotherapy. "There are much worse diseases than this one and I can
overcome all this", she claims. "We just to follow all the treatment,
take the medication and follow all the doctor’s advice. They gave me six months
to live and now see, I’m still here, a decade later".
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