Vitalina Loureiro tem dez anos de idade, em 1950. Mora
em Foros de Salvaterra, com os pais, agricultores pobres, donos de um pequeno
pedaço de terra que mal dá para criar um burro, algumas vacas, galinhas e
alguns porcos. Os quatro irmãos mais velhos estão casados, a viver cada um na
sua casa. É assim ela que carrega o fardo de ter que ajudar a mãe na lida
diária. Porém, é na escola que ela gostaria de estar. Queria aprender a ler, a
escrever, a conviver com gente da sua idade. A mãe, no entanto, bate-lhe sempre
que partilha estes seus sonhos. É que o avô materno, que era professor,
acreditava que “mulher é feita para estar em casa, a coser a roupa e a cozinhar
para o marido”. Os ensinamentos passam de mãe para a filha. “Estudar? Vais mais
é dar de comer às vacas, apanhar erva, lavar a roupa e preparar o jantar!”,
exclama a senhora, de dedo em riste.
Vitalina recusa-se a aceitar o seu destino e, um dia,
depois de comprar o pão, em vez de regressar a casa, corre pelo caminho de
terra batida, até à escola. De roupa suja, cabelo desgrenhado, braços caídos ao lado
do corpo, olhar cabisbaixo e pés descalços, entra na sala e ali fica a assistir
à sua primeira aula. No final, a professora pede-lhe que traga uma pedra,
caneta e livro. Quando chega a casa, com a lista do material, a mãe,
enfurecida, espanca-a até se cansar. “Acho que nunca levei tanta porrada na
minha vida”, recorda a senhora, agora com 76 anos de idade.
Mas naquele dia, Vitalina não esmorece e, na manhã
seguinte, acorda mais cedo, arranja-se, despacha alguns afazeres
domésticos e prepara-se para ir para a escola quando a mãe a trava. Jamais
deveria pôr os pés naquele local, avisa-a de olhar diabólico. Apesar das obrigações,
a menina consegue escapulir-se algumas vezes. Porém, os resultados na escola
eram maus. “Dava muitos erros e nem hoje sei a tabuada de cor”, ri-se. A
professora batia-lhe por errar nas contas e cometer demasiadas falhas nas
cópias e ditados. Meses depois, questiona-se: “valerá a pena sofrer por isto?
Na escola levo porrada porque sou má aluna, em casa apanho tareia porque a
minha mãe não quer que vá para a escola! Isto tem que acabar”, pensa de si para si. Vitalina tem 10 anos de idade. Um ano depois, o pai comete suicídio e
juntamente com a mãe é forçada a viver com uma tia, em Alverca, e ajudar no
sustento da casa. Os estudos ficam arrumados ad eternum e passa a dividir o
tempo entre a monda do arroz, a apanha do trigo e, a partir dos 11 anos, começa
a “servir” em casa de senhoras ricas de Lisboa. “Na avenida João XXI havia
imensa gente que contratava estas criadas para lavar a roupa, fazer o comer,
limpar a casa e cuidar dos filhos. Ganhava 100 escudos por mês”, numa altura em que um
professor conseguia auferir cerca de 1.500 escudos. Eram outros tempos. Um
período em que ser mulher era fazer parte de um grupo social sem direitos,
espezinhado pelo mundo, num patamar inferior e sem respeito próprio.
A 8 de março assinala-se o dia internacional da
mulher. Apesar de este ser um tema que deve ser abordado diariamente, quero
aproveitar a data para lembrar que ainda há um longo caminho para percorrer: ser
mulher continua a ser sinónimo de elo mais fraco. Eu sou filho de uma mãe
maltratada e sei o que a casa gasta. Por isso, ao ouvir as palavras desta
senhora de 76 anos, não pude deixar de me emocionar e de partilhar consigo esta
história de vida única, um testemunho de que o “sexo mais fraco” já passou em
eras anteriores.
Vitalina Loureiro é também uma das protagonistas de
uma exposição que desvenda alguns dos pormenores do quotidiano feminino do
século passado. E ela ali está, naquela fotografia, com 13 anos, tirada pelo
irmão, no dia de Carnaval. “Estava de folga e de visita à minha mãe quando sugeri a ele
tirar esta imagem com as roupas do campo que usava em Foros de Salvaterra. Por
trás está o estendal da minha tia e ali perto passa o rio onde costumava lavar
a minha roupa”. Era um rio limpinho, deduzo eu. “Oh, se era! Tenho tantas
saudades daquela água cristalina. No inverno, quando chovia muito, ouvia do meu
quarto a água a correr a arrastar as pedras no leito do rio. Era assustador e
bom ao mesmo tempo”. Esta e outras fotos, bem como objectos do dia a dia
feminino, como ferros de engomar ou roupas de interior da época, podem ser
vistas, no Núcleo Museológico de Alverca, até final de 2017. Uma exposição a não perder!
Vitalina refuses to accept her fate, and one day, after buying bread, instead of returning home, she run by the dirt road to school. With old clothes, tousled hair, arms at her sides, looking crestfallen and barefoot, she enters the room and there she attend her first class. In the end, the teacher asks her to bring in the next day a stone, pen and book. When he arrives home, with the list of material, the mother, angry, beats her ‘till he gets tired. "I guess I never took such a beating in my life," recalls the woman, now 76 years old.
But that day, Vitalina didn’t wane, and the next morning, wake up early, prepares everything, arranged herself, dispatches some household chores and was about to go to school when her mother hangs out the door. She should never set foot in that school again, warns with a devilish look. Despite the obligations, the girl manages to slip a few times in the next months. However, the results at school were bad. "I gave a lot of mistakes and even now I don’t know the multiplication tables," she laughs. The teacher beated her for making mistakes and at home her mother also spanked her. Months later, she thinks: "is it worth suffering like this? At school take a beating because I am poor student, at home I’m spanked because my mother does not want me to go to school! This has to end". Vitalina is 10 years of age. A year later, the father commits suicide and along with the mother they are forced to live with an aunt in Alverca, and then she really has to help support the house. The studies set aside and she starts to split time between weeding rice, harvesting wheat, and from 11 years old on she begins to "serve" as a maid at wealthy ladies homes in Lisbon. "Back then, a lot of people used to hire young girls to wash clothes, clean the house, do the food and take care of the children. She earned a dollar a month at a time when a teacher could earn about 15 dollars. Those were really different times. A period in which a woman was part of a social group without rights, trampled in the world, on a lower level and without respect.
March 8th marks the International Women's Day. Although this is an issue that must be addressed on a daily basis, I take the time to remember that there is still a long way to go: a woman remains synonymous with weak link. I am the son of an abused mother and know what the house spend. So to hear the words of this 76 years old lady, I could not help but cry and share with you the story of one life, a testimony of what the "weaker sex" has passed in previous eras.
Vitalina Loureiro is also one of the protagonists of an exhibition that reveals some of the details of the everyday women life of the last century. And there she is, in that photograph, with 13 years old, taken by his brother. "I was off and visiting my mother when I suggested to my brother to take this picture with the clothes I used in the countryside. Behind is the drying line of my aunt and nearby passes the river where I used to wash my clothes”. It was a pretty clean river, I deduce. "Oh, it was! I missed so much that clear water. In the winter, when it rained a lot, I could listen from my room the sound of the running water, dragging the stones in the river bed. It was scary and good at the same time". This and other photos as well as day objects of the female day, like irons or inside clothing, can be seen in Alverca Museum until the end of April of 2017. An exhibition not to be missed!
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