Há uma
profunda tristeza no olhar de Chica. É a marca da tortura infligida, em bebé, por
um criminoso que saiu impune. Para esta cadelinha, o mundo é um sítio horrível povoado
por humanos, os monstros que lhe inventaram os pesadelos e lhe ensinaram o medo.
Quando a fui buscar ao canil, tinha seis meses de idade e um medo brutal de
viver. O próprio vento assustava-a. Apaixonei-me por ela assim que a vi.
Entrei nas
instalações da associação Animal Angels num final de tarde frio com o objetivo
de encontrar o meu primeiro animal de estimação. Sempre cresci rodeado de
galinhas, coelhos, vacas, porcos e cães, como qualquer família normal a habitar
no meio do campo. Depois de estudar, comecei a trabalhar em Lisboa e ao fim de
alguns anos acabei por arrendar casa nas Olaias, num apartamento de uma
assoalhada e pouco mais de 40 metros quadrados, exíguos para um ser humano, quanto
mais dois seres vivos. Por isso, assim que vim morar para a minha nova casa com
quintal, achei que era a oportunidade única para poder ter um amigo de quatro
patas. Procurei por associações locais à medida que ia desfolhando anúncios e
pedidos de ajuda ilustrados por focinhos de todas as cores e feitios. Há
histórias horripilantes que são tristes de conhecer. O meu receio era ter que escolher
um no meio de tantos necessitados de afeto. Temia o peso na consciência: porquê
aquele cão e não outro? E um gato também? Porque não levar dois cães e fazem
companhia um ao outro? Enfim, dilemas sem fim. Fui adiando a difícil tarefa de
ter que escolher. Apenas um, porque, infelizmente, sou apenas eu nesta aventura
e já tenho idade para saber que não vou salvar o mundo, embora possa dar o meu
contributo.
A enorme quinta é praticamente um jardim zoológico. Há
cavalos, patos, porcos, galinhas, avestruzes, cabras e ovelhas. Tudo animais largados
à sua sorte. Há uma boa meia dúzia de boxes onde estão enfiados dezenas de
cães. À medida que percorro o espaço, Mário Ferreira, responsável pela
instituição, conta-me algumas das histórias mais impressionantes enquanto me
faz uma visita guiada pelas instalações. À proximidade do salvador, a matilha
excita-se. Uns pulam, outros põem-se de pé com as patas dianteiras contra a
vedação. Todos clamam por atenção, pela posse do território, por comida, por
carinho e questionam quem é o estranho. Há, porém, uma exceção. Uma cadela de
pelo castanho claro com manchas brancas, orelhas descaídas e um olhar tímido e
carente. Chica está do lado oposto das boxes, mantém-se o mais afastada
possível de toda aquela confusão e das duas pessoas que se aproximam. Apenas as
grades evitam que se escape para mais longe. Imediatamente chama-me a atenção e
percebo que há ali uma necessidade imensa de salvação. Mário sugere outros
animais, só que o meu coração está tomado e saio dali com uma nova amiga. “Um
projeto de vida”, assim lhe chama Mário Ferreira. Sim, é.
Mais de meio ano depois, Chica continua incapaz de manter o olhar de frente por muito
tempo, caminha sempre por trás de mim e rejeita qualquer comida que lhe possa
dar. Alterna entre profundos momentos de alegria e exitação com outros de autêntico
pavor. Basta um ruído ao fundo da casa, um porta que se mexe com a corrente de
ar, uma rajada de vento mais forte, um pedaço de plástico que surge do nada. A
apreensão está agora impregnada no código genético e o trauma é para toda a
vida. Chica nunca será plenamente feliz porque foi ensinada a ter medo. É claro
que me reconhece e abana o rabo sempre que me vê e protege a casa de estranhos.
Ela sabe que agora tem um porto de abrigo, mas vive receosa que, a qualquer
momento, o terror surja do nada. Chica é o meu projeto de vida. Hoje o vento já
não a assusta. Um dia, espero que humanos também não.
There’s a
deep sadness in Chica’s eyes. It is the mark of the torture inflicted when she was
a baby, by a criminal who went unpunished. For this puppy, the world is a
horrible place populated by humans, monsters who invented her nightmares and
taught her fear. When I picked her in the dog shelter, she was six months old
and was so afraid to live. The wind itself frightened her. I fell in love as
soon as I saw her.
I joined
the association's facilities Animal Angels in a final cold afternoon in order
to find my first pet. I always grew up surrounded by chickens, rabbits, cows,
pigs and dogs, like any normal family that live in the countryside. After
studying, I started working in Lisbon and after a few years I ended up renting
an single bedroom apartment over 430 square feet, confined to a human being,
let alone for two living beings. So, as soon as I moved to my new house with a
yard, I thought it was a unique opportunity to be able to have a four-legged
friend. I surfed the web for local associations and read dozens of requests for
help illustrated by muzzles of all colors and sizes. There are horrific stories
that are sad to know. My fear was having to choose one among so many in need of
affection. I feared my guilty conscience: why that dog and not another? And a
cat too? Why not take two dogs and make each other company? Well, endless
dilemmas. But I had to choose. Only one. Unfortunately, it’s just me in this
adventure and I am old enough to know that I will not save the world, though I
may give a contribution.
The huge
farm is just like a zoo. There are horses, ducks, pigs, chickens, ostriches,
goats and sheep. All animals were dropped by their owners. There's a good half
dozen big kennel stuffed with hundreds of dogs. As I walk by, Mário Ferreira,
responsible for the institution, tells me some of the most astonishing stories
while he makes me a guided tour of the facilities. The dogs feel the proximity
of humans, so the pack turns up. Some jump, others put to his feet with the
front legs against the fence. All clamoring for attention, for possession of
the territory, for food, warmth and they all wonder who’s the stranger by their
savior’s side. But there is an exception. A light brown dog with white spots,
drooping ears and a shy, needy look is on the opposite of the pit, remains as
far as possible of all the excitement and from the two people approaching. Only
the bars prevent her from escaping further. She immediately called my attention
and I realize that there was an immense need for salvation. Mario suggests
other animals, but my heart is taken and I go out there with a new friend.
"A life project", so calls her Mario Ferreira. Yes, she is.
More than
half a year later, Chica’s still unable to maintain eye contact with humans for
a too long period of time, she always walks behind me and rejects any food that
I can give. She switches between profound moments of joy and excitation with
others of authentic dread. Just a noise at the back of the house, a door that
moves with the airflow, a gust of strong wind or a piece of plastic that comes
out of nowhere makes her of fear. The seizure is now steeped in the genetic
code with a lifelong trauma. Chica will never be fully happy because she was
taught to fear everything and everyone. Of course, she recognizes me and wags
his tail whenever I arrive home from work. She knows that now she has a place
of refuge, but lives afraid that at any moment, terror emerges from nowhere.
Chica’s my life project. Today the wind no longer scares her. One day, I hope human
neither.
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