O percurso profissional de Ana Maria
Magalhães e Isabel Alçada confunde-se com a transformação radical que Portugal
atravessou nas últimas quatro décadas. É impossível dissociar o aumento dos
hábitos de leitura com o trabalho desenvolvido pelas escritoras. E se há mais
jovens a ler, o país fica a ganhar. Portugal tem uma enorme dívida de gratidão para
com estas ex-professoras. Exagero? Bem pelo contrário.
Quando era miúdo, detestava ler.
Atravessei a primária, atual primeiro ciclo, apenas com aquilo que captava nas
aulas. Sempre tive bom ouvido e os meus pais eram muito exigentes, o que me
ajudou a ultrapassar as cópias e os ditados com sobriedade. O problema foi
quando cheguei ao quinto ano e a matéria começou a adensar-se. Um dia, um
colega de turma desafiou-me a comprar ‘Uma Aventura no Supermercado’. “É
espectacular, vais adorar”, prometeu ele. Aceitei a proposta, comprei o livro
com alguns escudos que tinha amealhado e lá o comecei a ler. O enredo
prendeu-me desde o início: conta como o João, ao fazer umas compras no
supermercado, dá de caras com um esquema de tráfico de diamantes. Tinha
mistério, códigos indecifráveis, personagens da minha idade, linguagem simples,
ação, tudo apimentado com humor. Fiquei rendido. Antes, raramente conseguia terminar
meia dúzia de parágrafos sem adormecer pelo meio. Depois, passei a devorar
livros como quem come cerejas. Não havia facebook, televisão por cabo ou jogos
de computador. Os meus hobbies resumiam-se a brincar no campo e construir casas
com os materiais de trabalho do meu pai. As referências mediáticas eram poucas e
a maioria dos heróis vinha dos EUA, como ‘O Justiceiro’, o ‘MacGyver’ ou até
mesmo o tio Patinhas. De certa forma, a Ana Maria Magalhães e a Isabel Alçada foram como que as minhas heroínas
da juventude, que me compreendiam, entretinham e me apresentaram a todo um
admirável mundo novo. Eram figuras simpáticas e fascinantes contadoras de
histórias. Tudo o que um adolescente mais desejava.
Corri toda a coleção ‘Uma Aventura’,
descobri as ‘Viagens no Tempo’ e depois voei com a ‘Asa Delta’. Descobri o que é ter fome de livros
e sede de informação. A querer aprender mais. O princípio para um ser humano pleno.
Passei a ver o mundo com outros olhos e sei que hoje sou jornalista, escrevo
livros e tenho este blogue graças àquele momento em que decidi entregar-me às
aventuras. Estou profundamente agradecido. Sentimento que decerto muitos outros
partilharão comigo: pessoas que cresceram melhores cidadãos. Porque é
esse o âmago da coleção ‘Uma Aventura’ e de todo o trabalho destas escritoras:
introduzir nas crianças o gosto pela língua portuguesa, algo inexistente há
quarenta anos, e quebrar um ciclo de apatia que assolava o Portugal
pós-ditadura. “Ficámos estupefactas quando chegámos às escolas e nada havia
para promover a leitura”, começa por lembrar Isabel Alçada. Ana Maria Magalhães
acrescenta: “nos primeiros estabelecimentos onde trabalhei, em Lourenço Marques
e, depois, em Salvaterra de Magos, nem sequer havia biblioteca!”
Ambas reconhecem que cresceram
afortunadas. Isabel estudou no Liceu Francês, em Lisboa, rodeada de livros e
férias na praia. “O que me impressionava nem era apenas os jovens lerem pouco,
era nada se fazer para contrariar este paradigma”. Ana Maria Magalhães, também
habituada a um lar recheado de histórias e verões passados no Estoril, confidencia:
“uma das soluções de um diretor que conheci foi sugerir obras, sobretudo de
leitura complexa, que os estudantes podiam ir buscar à biblioteca itinerante da
Gulbenkian. Livros que nunca liam e só passeavam debaixo do braço em frente ao professor
para mostrarem respeito e obediência. Era esta a norma que todos cumpriam”.
Ana e Isabel conhecem-se na preparatória
Fernando Pessoa, em 1976, e percebem de imediato que partilham a mesma angústia.
Abismadas com tamanha lacuna, começam a trocar bitaites. Estavam inconformadas e
decidem contribuir para um movimento que, inocentemente, viria a atingir escala
nacional. “Começámos a escrever pequenas histórias que entregávamos aos nossos
alunos. Nunca dizíamos que éramos as autoras. Queríamos que fossem imparciais e
juízes do nosso trabalho”, explica a ex-ministra da Educação. A receptividade
foi fantástica, como saudosamente recorda a parceira de escrita: “eles pediam
sempre mais e perguntavam pelas personagens. Sabíamos que estávamos no caminho
certo. E foi aí que nasceu a ideia. Infelizmente, a maioria desses contos
deitei-os para fora”, lamenta profundamente Ana Maria Magalhães. A amiga lança-lhe
um olhar doce e saudosista. “Os professores acumulam toneladas de papel e temos
que nos livrar de muita coisa”. O que ainda restou veio a dar origem à segunda série
lançada pelas escritoras, em 1985, intitulado ‘Viagens no Tempo’. Anos depois, criaram
três histórias para a ‘Asa Delta’ e, aos poucos, diversificaram o seu portefólio,
mais vocacionado para o público infantil: ‘Quero Ser’, ‘História de Portugal’,
‘Ler Dá Prazer’, entre outros. “Gostamos de variar, sabe?”, esclarece Ana Maria
Magalhães. “Era impossível escrever quatro a cinco aventuras por ano, como
fazíamos. Precisamos de nos reinventar e foi um passo natural que demos ao
escrever outro tipo de livros”. Isabel Alçada assegura: “e depois de ler, por
exemplo, 15 números das ‘Viagens no Tempo’ é natural que os nossos leitores
cresçam e sigam para outro tipo de leituras”.
Ao todo, terão vendido mais de 10 milhões de livros, o que as torna as escritoras portuguesas de maior sucesso
nacional. E tudo isto, mantendo horários completos no ensino. “Muitas vezes
tínhamos que trabalhar ao fim de semana”, recorda Isabel Alçada. O volume de
trabalho foi crescendo e os projetos ampliaram-se. Ana Maria Magalhães, por
exemplo, viria a colaborar, entre 1989 e 1991, na reforma do sistema educativo
e foi a coordenadora do jornal do Gil, durante a Expo98. Isabel Alçada, por seu
turno, antes de ser ministra da Educação, entre 2009 e 2011, foi encarregada de
conceber a rede nacional de bibliotecas escolares e esteve na génese do plano
nacional de leitura. “Atualmente, as bibliotecas, são locais de conhecimento,
entretenimento e o centro nevrálgico de qualquer escola, fonte de saber e
orgulho”, congratula-se a ex-governante. “Mas é pelos livros ‘Uma Aventura’ que
seremos sempre conhecidas”, segreda Ana Maria Magalhães, após autografar um
segundo livro durante a entrevista que lhes fiz na feira do livro de Lisboa.
Foi a
propósito deste evento, do dia da criança e da relação que ambas têm com o
Ribatejo, que tive a oportunidade de as conhecer e entrevistar. Por uma hora, pude
regressar ao passado e ser miúdo de novo. E pude agradecer. “Sabe”, começa por
justificar Ana Maria Magalhães, “fui professora durante 39 anos e após este
tempo, sem dúvida que tenho uma enorme sensação de dever cumprido”. Sentadas
lado a lado, as amigas de quatro décadas, lançam um sorriso enternecedor. “O
nosso objetivo sempre foi criar o gosto pela leitura, porque nada havia para os
jovens. Tínhamos esse dever para com os alunos”, explica Isabel Alçada.
E
depois há o dia em que eu, depois de escrever uma carta para a editora Caminho,
recebi uma missiva escrita à mão pelas próprias. O meu coração parecia que ia
explodir! Ainda retenho na memória aquele dia em que arranquei a carta das mãos
do meu avô que a tinha ido buscar à caixa do correio. “Mas elas escrevem mesmo
a todos os leitores?”, espantei-me. Nada como as pôr à prova. Vai daí, enviei,
ao longo dos anos seguintes, dezenas de cartas e todas, sem exceção, obtiveram
resposta. Tenho-as ali guardadas, como fã incondicional que sou. Perante a
revelação, soltam uma gargalhada. “Respondíamos sempre. Exceto nos casos em que
as perguntas eram simples, como ‘porque as ilustrações são a preto e branco?’
Aí, replicávamos a mesma resposta”, explica Ana Maria Magalhães. E, já agora,
porque são? “Para a impressão ser mais barata”.
Quanto
ao segredo entre as gémeas (um assunto que era tema de intenso debate entre a
malta) “não será revelado tão cedo” e a atual cadência de livros manter-se-á.
“Não temos planos para parar”, assevera Isabel Alçada. “Queremos escrever e
temos centenas de ideias em mãos. Recebemos imensos convites de autarquias,
museus, palácios… tem que ser com calma”, suspira a ex-ministra da Educação. Foi
publicado este mês de maio ‘A Bruxa Catuxa no Castelo das 5 Torres’, novo volume
da coleção ‘Floresta Mágica’, e ‘Uma Aventura em Conímbriga’, “também um
projeto encomendado”, sai em fevereiro de 2017. Ah, para que perceba a
importância de tudo isto, quero lembrar-lhe que Isabel Alçada tem 70 anos e Ana
Maria Magalhães conta com 74 primaveras. Serão os 70 os novos 40?
Ana Maria Magalhães and Isabel Alçada’s career can be confused with the
radical transformation that Portugal went through the last four decades. It is
impossible to dissociate the increase in reading habits with the work of these
two writers. And if there are more young people to read, the country only has
to gain. Portugal has a huge debt of gratitude with these former teachers. To bold
statement? On the contrary. They the Portuguese verson of Enid Blyton.
When I was a kid, I hated reading. I walked through the primary only
with what I captured by ear in class. I always had a good ear and my parents
were very demanding, which helped me to overcome soberly all the tests. The problem
was when I got to the fifth grade and the matter began to thicken up. One day,
a classmate challenged me to buy 'Adventures in the Supermarket'. "It's
great, you'll love it" he promised. I accepted the proposal, bought the
book with some money I had amassed and then I began to read it. The story
gripped me from the start: it tells how João, while doing some shopping at the
supermarket, discovers a diamond trafficking scheme. There were mystery,
indecipherable codes, characters of my own age, simple language, action, all
peppered with humor. I was surrendered. Before, I could rarely finish half a
dozen paragraphs without falling asleep in the middle. After that, I began to
devour books as one eat cherries. There was no facebook, cable TV or computer
games. It was the 80’s. My hobbies were restricted to play on the countryside
and to build houses with my father's work materials. The media references were
few and most heroes came from the USA, as 'The Knight Rider', the 'MacGyver' or
even Uncle Scrooge. In a way, Ana Maria Magalhães and Isabel Alçada were like
my youth heroines, who understood me, entertained and introduced me to a whole
brave new world. They were sympathetic figures and fascinating storytellers.
Everything a teen wanted most.
I read all the collection 'Uma Aventura', I found the ‘Viagens no Tempo'
and then flew with ‘Asa Delta’. I discovered what felt like having hunger for
books and thirst for information. I wanted to learn more and more. The
principle for full human being. I began to see the world through different eyes
and I know now that I am a journalist, I write books and I have this blog
thanks to that moment I decided to give myself up to the adventures. I am
deeply grateful for that. Probably a feeling that surely many of others Portuguese
share with me: people who grew better citizens. Because, after all, this is the
core of the collection 'Uma Aventura' and all the work of these writers:
introduce to the children a taste for the Portuguese language, something
missing for forty years, and breaking a cycle of apathy that plagued the
post-dictatorship Portugal. "We were astound when we got to school and
nothing was doing to promote reading", remembers Isabel Alçada. "In
the first establishments where I worked, in Lourenço Marques, Mozambique, and
then in Salvaterra de Magos, there was not even a library!", counteracts
Ana Maria Magalhães.
Both recognize that they grew fortunate. Isabel studied at the French
Lycée, in Lisbon, surrounded by books and holidays at the beach. "What
impressed me was not only the young people that read little, but was nothing
was doing to counteract this paradigm", confesses the former Education minister.
Ana Maria Magalhaes, also accustomed to a home full of stories and summers in
Estoril beach, confides: "one of the solutions of a director I met, in
1970’s, was to suggest to the kids works, especially with complex reading, that
students could get from the Gulbenkian-car library. Books that they never read
and just walked under his arm in front of the teacher to show respect and
obedience. This was the standard back then"
Ana and Isabel met in the Fernando Pessoa preparatory school in 1976,
and realize immediately that they shared the same distress. Astonish with such
gap, they began to change ideas. They slowly decide to contribute to a movement
that, naively, would achieve a national scale. "We started writing short
stories which we handed to our students. We never said we were the authors. We wanted
them to be impartial judges of our work", explains Isabel Alçada.
The reception was fantastic as longingly recalls Ana Maria Magalhaes:
"they asked always for more and asked about the characters. We knew we
were on the right track. And that was when the idea was born. Unfortunately,
most of these tales I threw them out", laments deeply. The writing partner
throws her a sweet and nostalgic look. "Teachers accumulate tons of paper
and have to get rid of it in the end of the year". What they saved came to
lead the second series of book adventures launched by them in 1985, the ‘Viagens
no Tempo’. Years later they created three stories to 'Asa Delta' and gradually
diversified their portfolio, aimed more at small children, 'I Want To Be',
'History of Portugal', 'Read Gives Pleasure', among others. "We like to
vary, you know," says Ana Maria Magalhães. "It was impossible to
write four to five adventures per year, as we did before. We need to reinvent
ourselves and it was a natural step we have taken to write other kind of books”.
Isabel Alçada adds: "and after reading, for example, 15 numbers of the
'Viagens no Tempo' it is natural that our readers grow and adhere to other
readings."
In all, they have sold more than 10 million books, which makes them the
most successful Portuguese writers. And all this while maintaining full time teaching
schedule. "Often we had to work at the weekend," recalls Isabel
Alçada. The workload has been growing and the projects broadened over the years.
Ana Maria Magalhaes, for example, would assist, between 1989 and 1991, in the
reform of the Portuguese education system and was the coordinator of the newspaper
‘Gil’, during Expo98. Isabel Alçada before being Minister of Education, between
2009 and 2011, was commissioned to design the Portuguese network of school
libraries and was in genesis of the Portuguese national reading plan.
"Currently, libraries are centers of knowledge, entertainment and the
nerve center of any school, source of knowledge and pride," congratulates
the former minister. "But we will always be known for the books 'Uma
Aventura'", confides Ana Maria Magalhães, after signing a second book
during the interview that I made them in the Lisbon Book Fair.
It was with the purpose of this event, Children’s Day and the
relationship that both have with the Ribatejo, that I had the opportunity to
know and interview them. For an hour, I could return to the past and be the a kid
again. And I could thank them for everything. "You know", begins to tell
me Ana Maria Magalhães, "I was a teacher for 39 years and after all that
time, no doubt I have a huge sense of accomplishment". Sitting side by
side, the friends for four decades, launch an endearing smile. "Our goal was
always to create reading habits, because
there was nothing for young people in the past. We had this duty to our students",
explains Isabel Alçada.
And then there was the day when, after writing a letter to the editor Caminho
who published their books, I received a letter handwritten by themselves. My
heart felt like it would explode! I still retain in the memory that day when I
pulled the letter from my grandfather’s hand who had gone to the mailbox.
"But do they write to all readers?" I wondered, amazed. Nothing like
to do a test. So I did: I sent over the following years, dozens of letters and
all, without exception, got an answer. I have kept them there, as diehard fan I
am. Faced with the revelation they laugh. "We always respond to all our
readers. Except where the questions are simple, like 'why are the illustrations
in black and white?' Then photocopied the same answer", justifies Ana
Maria Magalhães. And by the way, as they why are they? "Printing is
cheaper".
As for the secret of the twins (a matter that was the subject of intense
debate between young Portuguese in the 80’s) "will not be revealed
soon" and the cadence of books will remain. "We have no plans to stop",
asserts Isabel Alçada. "We want to write and have hundreds of ideas. We
received immense invitations from municipalities, museums, palaces ... so it
has to be very slow", smiles the former Education minister. In May was published
'The Witch Catuxa in the Castle of the 5 Towers', the new volume of the
collection 'Magic Forest', and ‘Uma Aventura em Conímbriga', "also a
commissioned project," will be out in February 2017. Oh!, And to realize
the importance of all this, I want to remind you that Isabel Alçada is 70 years
old and Ana Maria Magalhães has 74 years old. Are the 70’s the new 40’s?